sábado, 23 de outubro de 2010

Quereres



Abri a janela do ônibus noturno fazendo o vento gelado soprar as nuvens do azulado das minhas unhas. O ar entrou pelas mangas maduras da minha camisa cansada, fez esfriar. É contínuo o anseio de um cobertor de pele nos transportes urbanos. Deparo-me com certa frequência irritante os casais adocicados que transformam bancos em movimento rastejante um pedaço de nuvem sem céu. Nesses relances permito-me querer. Querer um cabelo quente no meu colo frio pra fazer neblina com as próprias mãos. Esquentar o espelho à dois e enxugar o beijo com calma. Aguar as horas, pelejar com as filas, chutar algumas pedras sem sapato e poder sorrir ao telefone, desmembrando o dia em notas no ouvido mais aveludado. Escrever conselhos no cobertor, encher a estante com verbos novos e compartilhados, transbordar a panela com algum tempero que faça memória. Alguém pra dividir afeto. Alguém que queira querer.

Diana M.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Sede



E numa terça asfaltada, perfumei os cabelos cansados, calcei os pés de piar recente, fiz do arfar das novas penas o movimento circular das rodas que levam-me até aquele que bem conheço.Sentamos na calçada, entrelacei os dedos frios nos fios da camisa que instantes mais tarde, mais escuro, aquecia o chão de um quarto sem lençóis. Tudo nasce na língua, no salivar de alguns meses passados, nos dentes desabotoando os sorrisos na quintal vazio. Pulei a janela, pedi um copo suado de água, contorci no ímpeto carnal até os sons abafarem no travesseiro. Calças no joelho, a boca enche de asco escorrendo pelos pêlos que prosseguem movimentando-se sem perceber que o castanho da visão tornou-se reflexo da janela aberta. Choro pelas pernas, meu lacrimejar mancha as linhas das mãos que me guiam até o portão. A citosina desmembra a penugem, fazendo do ninho memória. Mas, a boca não sorri, o beijo não pede em matrimônio. Falta, falta o que eu nem sei. Creio que o acúmulo daquilo que nunca provei faça azedar todas as bocas efêmeras.